Indivisível é o título da história em quadrinhos elaborada por Marília Marz como Trabalho de Conclusão na Escola da Cidade – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. O trabalho tem como objetivo identificar e analisar as possibilidades narrativas intrínsecas a elementos arquitetônicos e urbanísticos do bairro da Liberdade, em São Paulo, em dois períodos históricos distintos.
As narrativas escolhidas, associadas às culturas negra e oriental, sobretudo japonesa, buscam contribuir para o entendimento do processo de construção da identidade do bairro. Essa investigação surgiu de uma curiosidade pessoal em entender os vários significados que se escondem por trás da palavra “identidade”, termo que pode ser entendido como uma projeção construída e sutilmente maleável, e até mesmo como uma permanente arena de disputas entre diversos atores que frequentam o bairro.
Ao caminharmos pela Liberdade, enxergamos facilmente elementos urbanísticos e até mesmo cenográficos que podem ser entendidos como uma referência à arquitetura e à cultura japonesa, no entanto, existe lá uma outra arquitetura que remonta à história de uma Liberdade que existiu muito antes da chegada dos imigrantes orientais. Acessar a memória desse bairro para estudá-lo no passado e no presente, através da arquitetura e da cultura oral, é fundamental para melhor compreendermos o processo de construção do bairro e, por consequência, da cidade de São Paulo.
O bairro da Liberdade passou por mudanças urbanísticas (e consequentemente identitárias) desde sua formação até os dias de hoje. Essas mudanças abrem espaço para uma discussão mais ampla sobre a estruturação da cidade e a normatização de práticas excludentes, tanto urbanísticas quanto sociais.
Aproveitando a discussão, vale a pena comentar sobre a recente mudança (oficializada a partir do dia 24 de julho de 2018) no nome da estação de metrô do bairro, de Liberdade para Japão-Liberdade. Acredita-se que a troca, efetuada em meio às comemorações dos 110 anos da imigração japonesa no Brasil, apesar de ter o seu valor, pois atende as demandas de parte dos moradores e reforça a identidade de um bairro com 65% da população originária ou de descendência japonesa, simplifica a complexidade identitária do lugar – que conta com pessoas de diversos lugares do mundo, principalmente de outros países asiáticos como China e Coreia. Além disso, é certo que a mudança de nome enfraquece e afasta a população da história que deu origem ao nome da praça e da estação - uma história de grande importância para a população negra de São Paulo, funcionando como mais uma camada de apagamento da história negra na cidade; uma forma lamentável de se comemorar os 130 anos da abolição da escravidão.
Um bairro que já foi majoritariamente negro, mas que teve traços dessa identidade apagados e as vezes literalmente soterrados, como o cemitério dos Aflitos que era destinado quase que exclusivamente ao enterro de escravos, hoje assombra esporadicamente o cotidiano de proprietários de terras, ao encontrarem eventuais ossadas durante o processo de verticalização do quarteirão compreendido entre a Rua dos Estudantes, da Glória e Galvão Bueno (local onde ficava o antigo cemitério).
Os mitos provenientes de situações como essa – almas de escravos injustiçados que vagam pelo bairro – fortalecem o sentimento de resistência da população negra, mas enfraquece, para os outros 46% da população do Brasil, a conscientização da dívida histórica de um país que carrega um passado escravocrata, pois ao chegarmos na Liberdade enxergamos apenas o bairro oriental.
De qualquer forma, impossível não ressaltar a importância dessa arquitetura, verdadeiras âncoras que resistiram às tranformações impostas pelo espaço e tempo, sem as quais o trabalho não seria possível, uma vez que essa memória não poderia ser acessada de nenhuma outra forma, pelo menos não durante uma visita ao bairro.
Em busca da identidade do chamado “bairro japonês”, é importante considerar a subjetividade do olhar, condicionado desde o começo a procurar elementos construtivos do bairro que correspondessem a essa cultura. A ideia aqui era estabelecer um contraponto com as igrejas, arquitetura que carrega um valor inestimável para a comunidade negra. O que encontramos de “arquitetura oriental” pelo bairro é em grande parte uma representação cenográfica do Japão, planejada pelo governo durante o plano de orientalização do bairro durante o final da década de 1960.
Por fim, o trabalho investiga a linguagem visual das histórias em quadrinhos, formato escolhido para a apresentação final, confiante de que essa mídia é uma forma eficaz de representar a coexistência dinâmica das culturas negra e oriental no bairro e as várias cidades de diferentes períodos históricos associadas a elas nas narrativas criadas.
O trabalho foi estruturado em duas partes – contidas no quadrinho. Uma delas conta a história que deu origem ao nome do bairro, “Liberdade”, e está diretamente associada à Igreja Santa Cruz dos Enforcados e à Capela dos Aflitos, lugares de referência para a comunidade negra não apenas dos arredores, mas também de outras regiões da cidade. Diante do apagamento da memória referente à cultura negra, seja através da demolição de espaços significativos para essa comunidade ou do êxito nos processos de embranquecimento de seus membros de destaque (por exemplo Machado de Assis, Chiquinha Gonzaga e Lima Barreto), o trabalho propõe um resgate de parte dessa memória.
A outra parte do trabalho tem como base as práticas cotidianas e propõe um ensaio sobre o dia a dia do bairro, uma tentativa de compreensão da multiplicidade de informações que nos é apresentada na rotina da vida urbana. Para tal, foi elaborada uma narrativa visual que busca o esgotamento dos elementos, muitos deles considerados característicos da cultura oriental, mais especificamente da cultura japonesa.
Juntas, as duas metades da história se encontram, compondo um romance gráfico sem começo nem fim, que busca cumprir o objetivo principal do trabalho: evidenciar a identidade da cidade como uma sobreposição de camadas construídas pelo tempo.
Elementos fantásticos foram elegidos para fortalecer a narrativa e servir de metáfora para a representação do tempo circular, onde nenhum acontecimento é absoluto e pontual, confiando que uma das melhores formas de compreender a realidade é através da ficção.
Texto fornecido pela artista. Conheça outros trabalhos de Marília Marz em seu site e Instagram.
Publicado originalmente em agosto de 2018, atualizado em maio de 2020.